As parteiras da floresta
A sabedoria de mulheres que garantem a vida de mães e bebês em regiões distantes começa a ser reconhecida
Teresa Bordallo, 49 anos, tinha apenas 16 quando "aparou" a primeira criança. Morava no município de Alenquer, no Pará, na região do baixo Amazonas. À beira dos rios nas florestas da região Norte, nas cidadezinhas do interior e ainda na periferia das capitais, quase todos os bebês são recebidos pelas mãos calosas de mulheres simples, que munidas de rezas, preparados à base de ervas e unguentos entendem que cumprem uma missão divina. Mas Teresa era pouco mais que uma menina, recém-casada, e não imaginava que seria uma das 60 mil parteiras que, segundo o Ministério da Saúde, atuam no País – 40 mil só nas regiões Norte e Nordeste – e são responsáveis por 15% dos 2,8 milhões de nascimentos registrados anualmente no País. Chamada para fazer companhia a uma parturiente, enquanto o marido saía em busca da parteira "oficial", ela se viu sozinha diante de um bebê apressado para nascer. Por sua cabeça passaram rapidamente cenas remotas, entreolhadas pelas frestas das portas e das paredes de madeira, na casa de parentes e vizinhos. "Quando havia um parto, nós, crianças, ficávamos curiosas e ‘brechávamos’ para espiar", conta a parteira, que calcula ter "aparado" mais de mil bebês. As lembranças deram coragem para enfrentar a urgência da situação. Ferveu água, desinfetou uma tesoura e alguns panos e rezou com fé e pronto. "Quando a parteira chegou, eu já estava preparando uma canja para o almoço." Vinte anos mais tarde, já com quatro filhos e um curso de auxiliar de enfermagem, Teresa mudou-se para a beira do rio Oiapoque, no extremo norte do Amapá. No município de mesmo nome, onde 40% dos 10,5 mil habitantes são indígenas, ela lidera o trabalho de capacitação das parteiras tradicionais, um projeto do governo do Amapá apoiado pelo Unicef para o reconhecimento profissional das mais de 580 parteiras do Estado. No final de julho, ela era uma das 442 participantes do I Encontro Internacional de Parteiras da Floresta, realizado em Macapá. Com seus vestidos simples e chinelos de dedos, elas compunham uma curiosa assembléia que discutia sob uma grande oca improvisada as formas de concretizar essa idéia.
Menina caripuna: aprendiz de parteira
O reconhecimento profissional é muito mais do que essas mulheres jamais sonharam. Até agora, a maior recompensa para elas foi serem chamadas, com carinho, de comadre e madrinha. Em locais encravados na mata, a quilômetros de distância de um hospital, a solidariedade é a grande moeda e a figura da parteira é indispensável. São elas que, de dia ou de noite, enfrentam a pé ou em lombo de burro as matas fechadas e as estradas esburacadas ou seguem em pequenos barcos rio acima ou rio abaixo só para "pegar menino". Sua ascendência sobre as famílias é muito forte. Acompanham a gestação, descobrem com mãos experientes a posição do bebê e com um rol de simpatias, receitas curativas, preces e palavras tranquilizadoras dão o apoio psicológico às parturientes. Muitas começam como Teresa, no susto. Outras são iniciadas pelas parteiras mais velhas, que passam seus conhecimentos a filhas, sobrinhas e netas. Com a população indígena do Oiapoque, Teresa aprendeu muito mais sobre a arte de partejar. Apesar de aculturadas e sob influência da igreja, as comunidades indígenas preservam muitas de suas tradições. Os segredos passam de geração em geração. São cânticos e orações em linguagem indígena, massagens com unguentos à base de gordura de animais de parto fácil, banhos com ervas para diminuir a dor e chás calmantes ou estimuladores de contrações. Para cortar o umbigo, por exemplo, pode-se usar uma lasca de bambu. Tira-se a casca e com uma faca aquecida no fogo corta-se a parte de dentro em formato pontiagudo. O cordão umbilical é amarrado com fio de algodão. "O método preserva os bebês do risco de infecção", explica Teresa.
Outro que aprendeu muito com os índios foi Francisco Jason de Freitas, 57 anos, atendente de enfermagem do posto da Funai na Aldeia do Manga, que fica a 26 quilômetros da cidade por estrada de terra. Há 50 anos está na aldeia e há 20 faz partos. E, o que é surpreendente por ser homem, também atende às índias – o que só se explica por sua história peculiar. Aos sete anos, Jason foi para a região com a mãe e duas tias. Professoras formadas no Pará, elas assumiram, no final dos anos 30, a missão de alfabetizar índios. Ele nunca se casou e ainda se vê como um forasteiro que cumpre a missão de ajudar os índios. "Os casais começam a pensar em planejamento familiar e já aceitam a pílula", conta Jason. Na arte do partejar, no entanto, sua professora foi a índia Maria Davina dos Santos, 82 anos, madrinha de quase toda a tribo caripuna. Ela também ensinou o ofício para outras oito índias, lideradas por Maria Inês dos Santos, 58 anos, que gestou dez filhos e perdeu a conta de quantos meninos aparou.
Das Neves com sua roupa de parteira: sem dia nem hora
Um dos grandes benefícios desse movimento de resgate da arte de partejar é o trabalho de educação dessas mulheres praticamente analfabetas. Nesse encontros, elas trocam experiências e recebem informações sobre higiene e saúde. Tudo em forma de oficinas. Não é fácil falar sobre Aids, sexo oral, homossexualismo e uso da camisinha com mulheres que na maioria passam dos 50 anos. Elas ouvem os ensinamentos entre curiosas e envergonhadas, mas de um jeito ou de outro levarão as lições para a vila onde moram. Maria Valquíria de Oliveira, 73 anos, por exemplo, casou duas vezes e teve 17 filhos. Nunca estudou, sempre trabalhou na roça e não tem televisão. Tinha 12 anos quando se viu obrigada a fazer o parto da irmã. "A mãe brigou com a gente, porque eu era menina, nem tinha menstruado ainda. Mas ela estava na roça", recorda. Apesar de sua experiência de vida, nunca tinha imaginado aprender numa reunião a colocar camisinha num improvisado pênis de madeira. "Eu não conhecia isso não. A gente morre e não acaba de aprender as coisas", diz ela, admirada. Segundo Valquíria, vai ser difícil ela treinar em casa. "Meu marido não vai consentir, não", afirma, rindo muito, encabulada.
O trabalho das parteiras irradia um calor humano que raramente se vê nas linhas de produção dos hospitais. Elas, mais do que ninguém, entendem de humanização do parto, uma tendência que ainda soa como novidade nos grandes centros urbanos. Sobre a barriga da mãe, o bebê que acaba de nascer descansa e geme fraquinho. Para elas, nada de palmadas. Os santos e as rezas também são peças importantíssimas nesse cenário. As parteiras não raro são também as benzedeiras do lugar. Cuidam da "mãe-do-corpo" sempre, com ou sem gestação. Zuíla Gomes Bezerra, 62 anos, é parteira e benzedeira desde jovem. "Minha vó me ensinou a puxar a mãe-do-corpo. É um dom de Deus", diz ela. Zuíla explica que a mãe-do-corpo bate no umbigo e só pode ser puxada se a mulher não estiver grávida. "Eu coloco o dedo no umbigo e aperto, quando ela não bate ou bate fraquinho é porque a mulher está doente. A mãe-do-corpo está espalhada, é preciso juntar", ensina. Com óleo de andiroba, cânfora ou mesmo azeite, ela faz uma série de movimentos convergentes para o umbigo e coloca a mãe-do-corpo no lugar. "Após a reza, aperto de novo. Sinto ela bater como um reloginho." Depois, em tom de confidência, ela explica: "A mãe-do-corpo são os ovários, o útero, tudo que a mulher usa para reproduzir."
Maria Valquíria, 73 anos, mostra a camisinha: curiosidade e vergonha
A sabedoria dessas mulheres começou a sair do anonimato há pouco tempo, graças à articulação da organização não-governamental pernambucana C.A.I.S. do Parto. Criada em 1991 em Olinda, a ONG defende os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e o reconhecimento das parteiras tradicionais. Um projeto piloto feito em Caruaru deu origem ao Programa Nacional de Parteiras Tradicionais que, com apoio do Unicef, já capacitou cerca de 3.500 mulheres das regiões Norte e Nordeste. "O índice de mortalidade materno-infantil onde atuam é baixíssimo", diz Suely Carvalho, uma das coordenadoras da ONG. Neste ano, o Estado do Amapá foi escolhido para o encontro justamente por seus índices surpreendentes. Desde 1996, o governo investe em cursos de capacitação e na distribuição de bolsas-parteiras – um kit com material de cuidados básicos. A revalorização do parto natural no Hospital da Mulher Mãe Luzia, em Macapá, resultou num índice médio anual de 12,48% de cesarianas, abaixo dos 15% indicados como aceitável pela Organização Mundial de Saúde.
A medida também atende aos objetivos do Ministério da Saúde, que em junho baixou portaria estabelecendo limites para o pagamento de cesarianas em hospitais de todo o País. O governo federal limitou em 40% o número de cesarianas para este ano e quer chegar ao ano 2000 com apenas 30%. "Há dois anos não temos nenhum caso de mortalidade materna. De 700 partos mensais, 30% são de bebês prematuros por conta das condições precárias das mães. A metade delas é adolescente sem alimentação adequada", contabiliza a obstetra Euclélia Silva, diretora do hospital. Outra questão preocupante são os casos de aborto. "De 100 que atendemos por mês, 80 são provocados. Elas chegam aqui apavoradas, com medo de morrer." Lutar para evitar essas situações-limite é mais uma no rol de ocupações das parteiras que, com esclarecimentos básicos, se tornam verdadeiros agentes de saúde. Maria Crisolina, representante das parteiras do Amapá, é uma das que dividem o tempo entre a orientação das companheiras e as visitas às suas gestantes. Sua colega Maria das Neves Palmerim, a "Das Neves", que de bolsa, touca e avental costuma sair correndo para atender à população ribeirinha do Amapá – que só chama mesmo na última hora –, resume com simplicidade a sua atuação: "A gente é assim, não tem dia nem tem hora."
Menina caripuna: aprendiz de parteira
O reconhecimento profissional é muito mais do que essas mulheres jamais sonharam. Até agora, a maior recompensa para elas foi serem chamadas, com carinho, de comadre e madrinha. Em locais encravados na mata, a quilômetros de distância de um hospital, a solidariedade é a grande moeda e a figura da parteira é indispensável. São elas que, de dia ou de noite, enfrentam a pé ou em lombo de burro as matas fechadas e as estradas esburacadas ou seguem em pequenos barcos rio acima ou rio abaixo só para "pegar menino". Sua ascendência sobre as famílias é muito forte. Acompanham a gestação, descobrem com mãos experientes a posição do bebê e com um rol de simpatias, receitas curativas, preces e palavras tranquilizadoras dão o apoio psicológico às parturientes. Muitas começam como Teresa, no susto. Outras são iniciadas pelas parteiras mais velhas, que passam seus conhecimentos a filhas, sobrinhas e netas. Com a população indígena do Oiapoque, Teresa aprendeu muito mais sobre a arte de partejar. Apesar de aculturadas e sob influência da igreja, as comunidades indígenas preservam muitas de suas tradições. Os segredos passam de geração em geração. São cânticos e orações em linguagem indígena, massagens com unguentos à base de gordura de animais de parto fácil, banhos com ervas para diminuir a dor e chás calmantes ou estimuladores de contrações. Para cortar o umbigo, por exemplo, pode-se usar uma lasca de bambu. Tira-se a casca e com uma faca aquecida no fogo corta-se a parte de dentro em formato pontiagudo. O cordão umbilical é amarrado com fio de algodão. "O método preserva os bebês do risco de infecção", explica Teresa.
Outro que aprendeu muito com os índios foi Francisco Jason de Freitas, 57 anos, atendente de enfermagem do posto da Funai na Aldeia do Manga, que fica a 26 quilômetros da cidade por estrada de terra. Há 50 anos está na aldeia e há 20 faz partos. E, o que é surpreendente por ser homem, também atende às índias – o que só se explica por sua história peculiar. Aos sete anos, Jason foi para a região com a mãe e duas tias. Professoras formadas no Pará, elas assumiram, no final dos anos 30, a missão de alfabetizar índios. Ele nunca se casou e ainda se vê como um forasteiro que cumpre a missão de ajudar os índios. "Os casais começam a pensar em planejamento familiar e já aceitam a pílula", conta Jason. Na arte do partejar, no entanto, sua professora foi a índia Maria Davina dos Santos, 82 anos, madrinha de quase toda a tribo caripuna. Ela também ensinou o ofício para outras oito índias, lideradas por Maria Inês dos Santos, 58 anos, que gestou dez filhos e perdeu a conta de quantos meninos aparou.
Das Neves com sua roupa de parteira: sem dia nem hora
Um dos grandes benefícios desse movimento de resgate da arte de partejar é o trabalho de educação dessas mulheres praticamente analfabetas. Nesse encontros, elas trocam experiências e recebem informações sobre higiene e saúde. Tudo em forma de oficinas. Não é fácil falar sobre Aids, sexo oral, homossexualismo e uso da camisinha com mulheres que na maioria passam dos 50 anos. Elas ouvem os ensinamentos entre curiosas e envergonhadas, mas de um jeito ou de outro levarão as lições para a vila onde moram. Maria Valquíria de Oliveira, 73 anos, por exemplo, casou duas vezes e teve 17 filhos. Nunca estudou, sempre trabalhou na roça e não tem televisão. Tinha 12 anos quando se viu obrigada a fazer o parto da irmã. "A mãe brigou com a gente, porque eu era menina, nem tinha menstruado ainda. Mas ela estava na roça", recorda. Apesar de sua experiência de vida, nunca tinha imaginado aprender numa reunião a colocar camisinha num improvisado pênis de madeira. "Eu não conhecia isso não. A gente morre e não acaba de aprender as coisas", diz ela, admirada. Segundo Valquíria, vai ser difícil ela treinar em casa. "Meu marido não vai consentir, não", afirma, rindo muito, encabulada.
O trabalho das parteiras irradia um calor humano que raramente se vê nas linhas de produção dos hospitais. Elas, mais do que ninguém, entendem de humanização do parto, uma tendência que ainda soa como novidade nos grandes centros urbanos. Sobre a barriga da mãe, o bebê que acaba de nascer descansa e geme fraquinho. Para elas, nada de palmadas. Os santos e as rezas também são peças importantíssimas nesse cenário. As parteiras não raro são também as benzedeiras do lugar. Cuidam da "mãe-do-corpo" sempre, com ou sem gestação. Zuíla Gomes Bezerra, 62 anos, é parteira e benzedeira desde jovem. "Minha vó me ensinou a puxar a mãe-do-corpo. É um dom de Deus", diz ela. Zuíla explica que a mãe-do-corpo bate no umbigo e só pode ser puxada se a mulher não estiver grávida. "Eu coloco o dedo no umbigo e aperto, quando ela não bate ou bate fraquinho é porque a mulher está doente. A mãe-do-corpo está espalhada, é preciso juntar", ensina. Com óleo de andiroba, cânfora ou mesmo azeite, ela faz uma série de movimentos convergentes para o umbigo e coloca a mãe-do-corpo no lugar. "Após a reza, aperto de novo. Sinto ela bater como um reloginho." Depois, em tom de confidência, ela explica: "A mãe-do-corpo são os ovários, o útero, tudo que a mulher usa para reproduzir."
Maria Valquíria, 73 anos, mostra a camisinha: curiosidade e vergonha
A sabedoria dessas mulheres começou a sair do anonimato há pouco tempo, graças à articulação da organização não-governamental pernambucana C.A.I.S. do Parto. Criada em 1991 em Olinda, a ONG defende os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e o reconhecimento das parteiras tradicionais. Um projeto piloto feito em Caruaru deu origem ao Programa Nacional de Parteiras Tradicionais que, com apoio do Unicef, já capacitou cerca de 3.500 mulheres das regiões Norte e Nordeste. "O índice de mortalidade materno-infantil onde atuam é baixíssimo", diz Suely Carvalho, uma das coordenadoras da ONG. Neste ano, o Estado do Amapá foi escolhido para o encontro justamente por seus índices surpreendentes. Desde 1996, o governo investe em cursos de capacitação e na distribuição de bolsas-parteiras – um kit com material de cuidados básicos. A revalorização do parto natural no Hospital da Mulher Mãe Luzia, em Macapá, resultou num índice médio anual de 12,48% de cesarianas, abaixo dos 15% indicados como aceitável pela Organização Mundial de Saúde.
A medida também atende aos objetivos do Ministério da Saúde, que em junho baixou portaria estabelecendo limites para o pagamento de cesarianas em hospitais de todo o País. O governo federal limitou em 40% o número de cesarianas para este ano e quer chegar ao ano 2000 com apenas 30%. "Há dois anos não temos nenhum caso de mortalidade materna. De 700 partos mensais, 30% são de bebês prematuros por conta das condições precárias das mães. A metade delas é adolescente sem alimentação adequada", contabiliza a obstetra Euclélia Silva, diretora do hospital. Outra questão preocupante são os casos de aborto. "De 100 que atendemos por mês, 80 são provocados. Elas chegam aqui apavoradas, com medo de morrer." Lutar para evitar essas situações-limite é mais uma no rol de ocupações das parteiras que, com esclarecimentos básicos, se tornam verdadeiros agentes de saúde. Maria Crisolina, representante das parteiras do Amapá, é uma das que dividem o tempo entre a orientação das companheiras e as visitas às suas gestantes. Sua colega Maria das Neves Palmerim, a "Das Neves", que de bolsa, touca e avental costuma sair correndo para atender à população ribeirinha do Amapá – que só chama mesmo na última hora –, resume com simplicidade a sua atuação: "A gente é assim, não tem dia nem tem hora."
Fotos: MANOEL MARQUES
Fonte: Terra.com
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